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Falta energia ou falta visão?

Washington Novaes

O tema das barragens e usinas hidrelétricas volta a ocupar espaço abundante no noticiário, por muitas razões: 1) Por ser essa uma fonte renovável e menos poluente de energia, num momento de crise, e que abre a possibilidade de reduzir, com seu uso, as emissões de gases que intensificam o efeito estufa e acentuam mudanças climáticas; 2) pelo ângulo oposto, por estar o Brasil levando adiante vários projetos nessa área, quando alguns estudos mostram a possibilidade de, com conservação e eficiência energética, até reduzir consideravelmente nosso consumo de energia, além de poder recorrer muito mais do que o faz a outras fontes menos problemáticas (eólica, solar, de marés, biocombustíveis, principalmente); 3) porque a construção de hidrelétricas sem preocupação de implantar eclusas que permitam a navegação dificulta depois o aproveitamento desse meio de transporte (onde seja viável e sem custos excessivos); 4) porque grande parte da energia gerada se destina à produção de eletrointensivos (alumínio e ferro-gusa, principalmente), com altos subsídios, que impõem a toda a sociedade (que paga os subsídios) pesados sacrifícios, enquanto beneficiam principalmente consumidores dos países industrializados, grandes importadores desses produtos; 5) porque a interrupção do fluxo de rios e o alto armazenamento de águas suscitam outras preocupações aos estudiosos da área.

Pode-se começar pelo fim. O relatório Planeta Vivo 2006 e outros documentos da ONU dizem que a alteração e retenção do fluxo hidrológico no mundo para uso industrial, abastecimento doméstico, irrigação e produção de energia já fragmentam mais de metade dos maiores sistemas fluviais do mundo e 83% do seu fluxo anual (52% de forma moderada, 31% gravemente). A quantidade de água armazenada em reservatórios ou barragens já é, no mínimo, três vezes maior que a contida nos rios. Só barragens com mais de 15 metros de altura são 45 mil no mundo, segundo a Comissão Mundial de Barragens. São muitas as conseqüências: inundação de áreas importantes, perda de biodiversidade, desalojamento de populações, aumento da evaporação, acumulação de sedimentos (e geração de gases), entre outras.

Muitos países dizem não ter alternativas imediatas, como a China, diante do aumento da demanda por energia. Mas certamente não é o caso brasileiro. Já foram mais de uma vez citados neste espaço estudos da Unicamp e da Coppe (UFRJ) que mostram ser possível, a custos muito menores que no aumento da produção, reduzir em até 30% o consumo atual de energia, com programas de conservação e eficiência; e ganhar mais 20% com repotenciação de usinas antigas e redução de perdas nas linhas de transmissão (hoje em 15%). Mas ninguém ouve a área federal de energia discutir esse tema com a sociedade. Ao contrário, os responsáveis pelo setor só se preocupam em anunciar novas, caras e questionáveis unidades geradoras, na Amazônia, na polêmica área nuclear e em outros lugares problemáticos - Estreito (TO), Vale do Ribeira (SP) e Salto (SC), entre outros.

E tudo isso acontece em meio a graves discussões. Ora porque se muda o local de implantação de uma usina no Madeira e não se considera necessário novo estudo de impacto, ora porque já se anuncia para o ano que vem outra usina, no Rio Xingu, palco de conflitos sérios. Num momento, porque se condena o "esquecimento" de prever eclusas nas hidrelétricas do Rio Madeira - o que pode interromper a navegação; em outro, porque se condena à inundação um patrimônio paisagístico e cultural da humanidade, reconhecido pela Unesco, como é o caso de uma usina no Vale do Ribeira, onde podem sobrevir também problemas para remanescentes da mata atlântica, mangues, cavernas, restingas, quilombos, índios, caiçaras.

Estranho que pareça, não se discute um fenômeno cada vez mais freqüente, que é o rompimento de barragens. Só este ano isso já ocorreu no Rio Corrente (GO), em São Gonçalo (PB), inundando a cidade de São Vicente do Seridó; dois anos antes foi em Camará, onde o rompimento deixou 4 mil pessoas ao desabrigo. É evidente que se impõe uma revisão de métodos, inclusive por causa de alterações nos formatos de chuvas, com precipitações mais intensas em curto espaço de tempo.

É um problema que remete a recente estudo do Banco Mundial (28/3), em que está enfatizada a "baixa qualidade dos termos de referência e estudos de impacto ambiental" de projetos na área hidrelétrica. Por isso mesmo, e porque acha "razoáveis" os prazos concedidos pelo Ibama nos licenciamentos, não sugere o banco mudanças radicais nos processos e naqueles prazos - bem ao contrário do que pregam o ministro do Meio Ambiente e o presidente do Ibama.

Talvez fosse adequado olhar o que acontece em outras partes - como nos EUA, que já removeram 467 barragens, principalmente na Califórnia (48) e no Wisconsin (47); ou na Alemanha e na Hungria, onde estão em pleno andamento os planos de "renaturalização" dos rios, com a remoção de barragens, canalizações, etc., para que sejam restauradas as antigas planícies de inundação natural, removidas populações ribeirinhas e se evitem conseqüências desastrosas de enchentes. Ou ainda para várias partes da Europa, da Austrália, da Nova Zelândia, da Espanha, de Portugal, onde se investe pesadamente em energia eólica e solar - ao contrário do que fazemos aqui, onde o minguado programa de energias alternativas (Proinfa) se arrasta há anos, da mesma forma que os programas de eficiência energética (Procel).

É preciso repetir e repetir: entre 1973 e 1988, após o segundo choque do petróleo, durante 15 anos não aumentou em um só kilowatt o consumo de energia nos EUA, graças a programas de eficiência - e sem prejudicar o crescimento do PIB, que foi de quase 40% nesse período.

Eficiência não impede desenvolvimento. Ao contrário, ajuda, liberando recursos.

Fonte: O Estado de S. Paulo
Washington Novaes é jornalista
E-mail: wlrnovaes@uol.com.br

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