Pular para o conteúdo principal

Belo monte de violências (I)


Belo monte de violências


Artigos de Felício Pontes Jr., procurador da República no Pará e mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC-Rio.
Organizada em nove textos, a série de artigos está sendo publicada semanalmente pelo Diário do Pará aos domingos, no caderno Brasil.
 Inaugura-se aqui uma série de nove artigos – um por semana – que têm o objetivo de informar a razão pela qual o Ministério Público Federal ingressou com nove ações judiciais em dez anos de trabalho no projeto da Hidrelétrica de Belo Monte.


No ano 2000 houve um encontro de procuradores da República com os indígenas do Xingu. Representantes do povo Juruna, da Volta Grande do Xingu, disseram que encontraram nas margens do rio várias tábuas com números gravados. Eram réguas de medição. Estavam assustados. Temiam que fosse mais uma tentativa de construir uma barragem no Xingu. A lembrança do I Encontro dos Povos Indígenas do Xingu em 1989, quando a índia Kaiapó Tuíra passou o facão no rosto de um dirigente da ELETRONORTE, ainda estava nítida.

Imediatamente começamos a investigação. Os estudos já estavam em grau avançado. Mandamos a mensagem aos índios de que a régua significava exatamente o que eles temiam: a retomada pelo governo do projeto de construir uma barragem no rio Xingu. Eles responderam com a uma carta encarada como profecia. Dizia “nós, índios Juruna, da Comunidade Paquiçamba, nos sentimos preocupados com a construção da Hidrelétrica de Belo Monte. Porque vamos ficar sem recursos de transporte, pois onde vivemos vamos ser prejudicados porque a água do Rio vai diminuir como a caça, vai aumentar a praga de carapanã com a baixa do rio, aumentando o número de malária, também a floresta vai sentir muito com o problema da seca e a mudança dos cursos dos rios e igarapés ... Nossos parentes Kaiapó, Xypaia, Tembé, Maitapu, Arapium,Tupinambá, Cara-Preta, Xicrin, Assurini, Munduruku, Suruí, Guarani, Amanayé, Atikum, Kuruaya ... vão apoiar a Comunidade ...”


Tudo estava sendo feito contra a Constituição, a começar pela falta de consulta dos indígenas pelo Congresso Nacional antes de tudo se iniciar. É o que determina o artigo 231, §3º, da Constituição: “O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos... em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas...”


Seria momento do grande debate. Deputados e senadores ouviriam indígenas, outras comunidades afetadas e especialistas para sopesar os impactos positivos e negativos, o polêmic sobre a energia a ser gerada e, assim, autorizá-la ou não. Mas o governo ignorou tudo.


Havia problema também quanto ao local do licenciamento, a hoje Secretaria de Estado de Meio Ambiente – SEMA. O rio Xingu é um rio federal. Ele nasce no leste do Estado do Mato Grosso. Após percorrer aproximadamente 2.100 quilômetros, deságua no rio Amazonas, no Pará. Em se tratando de um rio federal, e ainda por banhar terra indígena, seu licenciamento somente pode ser realizado pelo IBAMA, nunca por um órgão estadual, como estava sendo feito.


Mas não era tudo. Com a ajuda de técnicos, como antropólogos e biólogos do MPF, descobriu-se também que havia incompatibilidade entre os cronogramas da ELETRONORTE e do Estudo de Impacto Ambiental e seu relatório (EIA/RIMA). O término de uma das viagens de pesquisa estava previsto para novembro de 2001, mas o EIA/RIMA estaria pronto 8 meses antes, em março de 2001. Como pode o Estudo de Impacto Ambiental estar pronto antes do estudo de campo ser concluído? Para que tanta pressa no licenciamento de uma das obras mais caras do Brasil?


E mais. A ELETRONORTE contratou a FADESP – Fundação de Amparo e Desenvolvimento da Pesquisa, para a elaboração do EIA/RIMA, sem licitação, ao preço de R$ 3.835.532,00. O resultado jamais foi mostrado ao público.


O Termo de Referência do empreendimento, que determina o conteúdo do EIA/RIMA, não contou com a participação do IPHAN – INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL, apesar da área de incidência direta da obra abrigar sítios arqueológicos.


Diante de tantas ilegalidades, não restou outra alternativa senão entrar com uma ação civil pública ambiental em maio de 2001. A Justiça Federal determinou a paralisação de tudo. Em sua decisão, o Juiz Federal Rubens Rollo D´Oliveira declara que “o desvio projetado na Volta Grande do Xingu atinge em cheio a área indígena JURUNA (Paquiçamba), e dizem os estudos da ELETRONORTE, parte da cidade de Altamira/PA, com reflexos ambientais e sociais de monta, a exigir a mais perfeita elaboração do estudo de impacto ambiental e social.”


O governo federal recorre ao Tribunal Regional Federal em Brasília, e perde. Recorre ao Supremo Tribunal Federal, e perde novamente. Na decisão, o Ministro Marco Aurélio sentencia que o licenciamento de Belo Monte, da forma que estava sendo realizado, contraria a Constituição. É necessário autorização do Congresso Nacional e que sejam ouvidas por ele as comunidades indígenas.


A primeira batalha estava vencida, mas a pergunta ficou no ar: o que estão escondendo em Belo Monte que não pode ser revelado para a sociedade brasileira?

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Ferrogrão: o que tem por trás dos estudos atualizados pelo Ministério dos Transportes e Infra S/A?

Ferrogrão: o que tem por trás dos estudos atualizados pelo Ministério dos Transportes e Infra S/A?   Telma Monteiro, para o Correio da Cidadania   O que seria um projeto tecnicamente adequado, economicamente viável e ambientalmente equilibrado para o MT e a Infra S.A.? Certamente essa “metodologia” não está tratando disso na atualização dos estudos da Ferrogrão em que minimizam as chamadas subjetividades e maximizam os fatores só importantes para o projeto econômico.   Introdução para atualizar nossa memória sobre o projeto Ferrogrão O projeto da Ferrogrão envolve a construção de uma ferrovia com aproximadamente 933 km para ligar Sinop (MT) ao porto de Miritituba (PA), para escoar, segundo a Confederação Nacional de Agricultura (CNA), até 52 milhões de toneladas de commodities agrícolas por ano. O traçado previsto no projeto é paralelo à BR-163 em que parte está dentro do Parque Nacional do Jamanxim, que é UC Federal. Além disso, o Tribunal de Contas da União (T...

O “desenvolvimento sustentável” no acordo de energia nuclear entre Brasil e China

O “desenvolvimento sustentável” no acordo de energia nuclear entre Brasil e China Imagem: Portal Lubes Telma Monteiro, para o Correio da Cidadania   O presidente Lula e Xi Jinping assinaram um acordo (20/11) no qual um dos itens propõe a construção de novas usinas nucleares com tecnologia considerada, no documento, avançada e segura, além de ser um marco importante na cooperação entre Brasil e China. O acordo promete fortalecer a capacidade produtiva e a segurança energética dos dois países, promovendo o desenvolvimento de tecnologias nucleares de ponta. Não esqueçamos que Angra 3 já está caindo de velha, antes mesmo de ser terminada. A construção da usina, localizada no estado do Rio de Janeiro, entrou na sua fase final com a montagem dos componentes principais e instalação do reator nuclear. Angra 3 está em obras desde 30 de maio de 2010 e enfrentou vários atrasos ao longo dos anos. As interrupções aconteceram em 2015 devido a uma revisão do financiamento e investigações ...

A “colonização dourada” idealizada pela China

A “colonização dourada” idealizada pela China   Telma Monteiro, para o Correio da Cidadania   Houve ainda quem mencionasse que esses acordos ajudariam o Brasil a diversificar suas atuais fontes de tecnologias com origem em outros países e reduziriam sua dependência. Me parece mais uma troca de “dependências”, só que no caso da China seria muito mais abrangente e sem retorno. A China não transfere tecnologia em troca de nada. Geralmente Xi Jinping condiciona a investimentos disfarçados em parcerias comerciais. Empresas brasileiras teriam que participar de joint ventures , assimilar e depender da transferência de tecnologia como parte do acordo.   Mais de 100 países já aderiram à Nova Rota da Seda ou Iniciativa do Cinturão e Rota (BRI) [1] . Dos 100 países, 22 são da América Latina. Durante a visita de Lula à China, em abril de 2023, já haviam sido assinados vários acordos para reforçar a cooperação econômica entre os dois países. A China tem pressionado o Brasi...