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Belo Monte no ENEM: o errado vira certo

Imagem: auribertoeternochocalheiro.blogspot.com

Artigo de Rodolfo Salm

Publicado em dezembro 8, 2010 by HC

Seguiria desta forma se não me contassem, por acaso, de uma menina daqui que estava “inconformada” com uma questão da prova, sobre Belo Monte, que ela estava convicta de que havia acertado apesar do gabarito oficial apontar o contrário. E ainda teve que ouvir chistes dos amigos por não ter acertado a única pergunta que se referia a algo diretamente ligado à sua região.Leciono na faculdade de Ciências Biológicas da Universidade Federal do Pará, em Altamira, no Xingu, onde se pretende construir a hidrelétrica de Belo Monte. Apesar de os meus futuros alunos estarem sendo selecionados pelo Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), eu vinha acompanhando apenas por alto os vários problemas das provas.

Trata-se da questão 15 da prova de “Ciências Humanas e suas Tecnologias”, que tem a seguinte introdução (os grifos são meus):
A usina hidrelétrica de Belo Monte será construída no rio Xingu, no Pará (ainda espero que não). A usina será a terceira maior do mundo e a maior totalmente brasileira, com capacidade de 11,2 mil megawatts (informação equivocada: esse seria o valor do pico das chuvas, a produção média anual seria de menos da metade disso). Os índios do Xingu tomam a paisagem com seus cocares, arcos e flechas. Em Altamira, no Pará, agricultores fecharam estradas de uma região que será inundada pelas águas da usina“.
Então, pergunta-se: “Os impasses, resistências e desafios associados à construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte estão associados…”
  1. Ao potencial hidrelétrico dos rios do norte e nordeste quando comparados às bacias hidrográficas das regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste do país.
  2. À necessidade de equilibrar e compatibilizar o investimento no crescimento do país com os esforços para a conservação ambiental.
  3. À grande quantidade de recursos disponíveis para as obras e à escassez dos recursos direcionados para o pagamento pela desapropriação das terras.
  4. Ao direito histórico dos indígenas à posse dessas terras e à ausência de reconhecimento desse direito por parte das empreiteiras.
  5. Ao aproveitamento da mão-de-obra especializada disponível na região Norte e o interesse das construtoras na vinda de profissionais do Sudeste do país.
É impressionante a constatação de que todas as alternativas estão certas! Com a possível exceção daquela que é considerada correta pelos examinadores…
A estudante secundarista escolhera a opção “d” (ausência de reconhecimento dos direitos históricos indígenas pelas empreiteiras) e não se conformava de ter “errado”, pois tinha visto os protestos dos índios na cidade e seu enfrentamento com os representantes das empreiteiras. Teoricamente, as empreiteiras só entram na jogada depois que o governo e o IBAMA liberam e dão as autorizações necessárias.
Poderia se dizer que houve desrespeito, sem dúvida, ao direito dos indígenas, mas que esse desrespeito veio de quem tomou a iniciativa de construir e a quem dá a autorização ambiental para construir. Mas sabemos que este é um jogo de cartas marcadas em que as empreiteiras é que ditam as regras, através, por exemplo, de fartas doações de campanha. O que explica, por exemplo, os recursos muito superiores da campanha presidencial do PT, se comparados com os da oposição.
A opção “a” (do potencial hidrelétrico das várias regiões) tem uma pegadinha: o “grande potencial inexplorado” do Brasil está concentrado na região Norte e não no Nordeste. Ainda assim, se colocarmos as duas regiões juntas em um lado da balança contra o resto do país do outro, ela não deixa de estar certa. Isso explica parte da resistência à barragem, sim, pois alguns dos opositores à obra não se conformam com este papel de exportador de energia barata para a nossa região, a favor do Sul e Sudeste desenvolvidos.
A precariedade do processo de desapropriação de terras e das compensações ambientais que não estão sendo cumpridas confirma a veracidade da opção “c”. Sem um estudo mais transparente e detalhado não é possível dizer com certeza se há realmente “escassez de recursos direcionados para o pagamento pela desapropriação das terras”. Mas porque este trabalho não começou há tempos, de forma séria e sistemática, bem antes da data que se pretende para o início das obras?
Finalmente, o “aproveitamento da mão-de-obra especializada disponível na região Norte” também é problemático e não há dúvidas de que há grandes interesses por parte das empreiteiras em vários negócios associados com a vinda de profissionais do Sudeste do país. Isso também está “associado aos impasses, resistências e desafios associados à construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte”. Afinal, parte dos que se dizem contra a obra, o são, pois sabem que, com a formação que têm, não teriam lugar nessa empreitada.
A opção oficialmente certa é a cínica: os impasses, resistências e desafios associados à construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte estariam relacionados “à necessidade de equilibrar e compatibilizar o investimento no crescimento do país com os esforços para a conservação ambiental”. Seria possível “equilibrar” sem “compatibilizar”? E o contrário? O mau uso do português é típico da estratégia de enrolação. E, afinal, o que é “compatibilizar o crescimento com a conservação”? Pode ser tudo e coisa nenhuma.
Os estudantes que marcaram como corretas as opções mais claras e diretas sobre o potencial hidrelétrico dos rios, o desequilíbrio no destino dos recursos disponíveis com prejuízo para as “compensações”, os direitos indígenas que estão sendo violados e a mão-de-obra local que não está preparada para ocupar posições importantes na construção, não pontuaram na questão 15 desta prova do ENEM. E ali foram selecionados aqueles que desde cedo carregam uma certa predileção pela linguagem ambígua sub-reptícia do discurso do “desenvolvimento sustentável”, rica em neologismos, mas pobre em significados concretos. Perdem as nossas universidades.
Não sei. Pode até ser que consigam nos enfiar essa hidrelétrica garganta abaixo, mas não há como manter a mentira para sempre. Feita em nome dos interesses das grandes empreiteiras, Belo Monte seria um desastre colossal para o Xingu, a floresta Amazônica, os índios e povo do Norte e do Brasil em geral. A não ser que ainda consigamos nos contrapor à força avassaladora de tais interesses, essa tragédia será para as gerações futuras a marca maior dos governos Lula e Dilma.
De forma geral, a marca maior desta passagem do PT pela presidência da República será o descaso com o meio ambiente. Mas Belo Monte não será apenas um exemplo entre muitos outros. Mais que a maior obra do PAC, seria aquela com os impactos mais amplos e profundos, com conseqüências continentais e repercussão mundial. Mais que as hidrelétricas do Madeira, dada a vulnerabilidade das florestas da Amazônia Oriental, e a importância do Xingu como último grande rio do planeta em ótimo estado de conservação e ocupado majoritariamente por povos indígenas. Mais do que a transposição do rio São Francisco, que não causará mudanças geopolíticas ecologicamente tão relevantes como a imensa migração humana que se espera para esta região da Amazônia, que geraria um imenso incremento nos desmatamentos.
Tentando acima de tudo reinventar a História, considerando o certo errado e o errado certo, a incompetência do vazamento de provas e os erros de impressão, como a numeração invertida das questões no quadro de respostas, são inevitáveis conseqüências.
Rodolfo Salm, PhD em Ciências Ambientais pela Universidade de East Anglia, é professor da UFPA (Universidade Federal do Pará) e faz parte do Painel de Especialistas para a Avaliação Independente dos Estudos de Impacto Ambiental de Belo Monte.
* Artigo enviado pelo Autor e originalmente publicado no Correio da Cidadania, parceiro estratégico do EcoDebate na socialização da informação.
EcoDebate, 08/12/2010

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