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Belo monte de violências (VIII)

Artigos de Felício Pontes Jr., procurador da República no Pará e mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC-Rio.
 Organizada em nove textos, a série de artigos está sendo publicada semanalmente pelo Diário do Pará aos domingos, no caderno Brasil.


As audiências públicas de Belo Monte não serviram para nada. Todo o esforço da sociedade civil, sobretudo dos 39 cientistas que compõem o Painel dos Especialistas que estudaram o impacto da barragem, foi desprezado, como mostra o parecer do Ibama de 23.11.09: “tendo em vista o prazo estipulado pela Presidência, esta equipe não concluiu sua análise a contento. Algumas questões não puderam ser analisadas na profundidade apropriada, dentre elas as questões indígenas e as contribuições das audiências públicas.”

O Governo simplesmente não deu a mínima para questões que colocavam em xeque a viabilidade do projeto. O objetivo era obter a Licença Prévia, e só.

No final de 2009 a Casa Civil da Presidência da República entra em cena. Presisona dirigentes do Ibama para concederem a licença. Os técnicos dizem que não há tempo nem dados suficientes no projeto do governo. O Diretor de Licenciamento se exonera.

Mesmo assim, o então Presidente do Ibama, Roberto Messias, exige parecer conclusivo de seus subordinados em 27.01.10. Em resposta, os técnicos afirmam que “faltam dados sobre ictiologia, quelônios, cavidades naturais, qualidade da água e hidrossedimentologia.”

Informação técnica em vão. O Ibama concede a licença quatro dias depois, sem os dados. O MPF entra com ação judicial contra o governo, fundamentada em sete irregularidades. Entre elas, destaca-se a quantidade de água que será liberada no trecho de 100 quilômetros da Volta Grande do Xingu, por onde o rio não mais passará em virtude de um desvio. Trata-se de uma região onde habitam pelo menos 12 mil famílias e 372 espécies de peixes.

A Eletrobrás propõe que a Volta Grande seja irrigada com apenas 4 mil m3/s. O Ibama diz que deve ser o dobro e, ainda, assim, com o desaparecimento de várias espécies de peixes.

Os peritos do MPF mostraram que nenhum nem outro têm razão. Analisando o volume de água do Xingu na série histórica de 1971 a 2006, comprovaram que as turbinas só geram energia se passarem por elas 14 mil m3/s de água. Somaram esse volume aos 8 mil m3/s propostos pelo Ibama. Chegaram a 22 mil m3/s.

A conclusão é terrível. Nos 35 anos observados, em 70% do tempo o Xingu não foi capaz de atingir esse volume, nem nas épocas de maior cheia. Portanto, os estudos demonstram que não há água suficiente para gerar energia naquela que, se um dia sair do papel, será a obra mais cara do Brasil.

A carta dos índios, quase dez anos antes desses estudos, soa hoje como profética: “Nós, índios Juruna, da Comunidade Paquiçamba, nos sentimos preocupados com a construção da Hidrelétrica de Belo Monte. Porque vamos ficar sem recursos de transporte, pois onde vivemos vamos ser prejudicados porque a água do Rio vai diminuir, como a caça, vai aumentar a praga de carapanã com a baixa do Rio, aumentando o número de malária, também a floresta vai sentir muito com o problema da seca e a mudança dos cursos dos rios e igarapés”.

Os procuradores da República que redigiram a ação, Cláudio Terre, Bruno Gutschow e Ubiratan Cazetta, concluem que Belo Monte “traz impactos socioambientais sem precedentes na construção de usinas hidrelétricas no Brasil.” A liminar foi concedida e derrubada dias depois. Aguarda-se decisão de mérito. 

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